sexta-feira, 31 de julho de 2015

Descartável

Ela começa a esboçar contrações faciais mesmo antes de recobrar a consciência.
Ainda de olhos fechados lambe várias vezes o céu de sua própria boca na vã tentativa de que o sabor amargo e desagradável abrande à medida em que engole a própria saliva.
Revira-se na cama buscando acomodar-se mas os lençóis úmidos não proporcionam o conforto desejado.
Sente o forte cheiro de bebida e vômito que impregnam o ambiente e indicam que na noite passada extrapolou os limites de de seu corpo.
Abre os olhos e contempla o teto do quarto, a lâmpada incandescente permanece com o filamento rompido aguardando ser substituida.
Mexe as pernas e percebe estar sem calcinha, na realidade tudo o que veste é uma camisa velha de algodão de seu namorado.
Gosta de usar as camisas dele, gosta de sentir o cheiro do perfume dele na roupa que veste, a mistura perfeita de suor, perfume e fumaça de cigarro. Este é o cheiro que lhe acalma.
Consegue facilmente separar os aromas que sente, faz isso fechando os olhos e buscando apreciar a memória que cada cheiro lhe traz.
O quarto permanece iluminado apenas pela luz da vela acesa no rechaud que exala os restos da essência de canela. Costumam acendê-lo para mascarar a fumaça dos cigarros de maconha, a mistura dos aromas dificulta aos mais inocentes a identificação do cheiro da droga.
Decide se levantar e como primeiro passo senta-se na cama. Passa as mãos no rosto removendo as sujeiras acumuladas nos cantos do olhos, percebe mais uma vez ter esquecido de remover a maquiagem, isso acontece com certa frequência. A pele de seu rosto já apresenta os primeiros sinais de sua falta de zelo, seus dezesseis anos não são facilmente perceptíveis, muito embora seja dona de uma imagem de pureza, quem lhe olha não deduz que possa ter tão pouca idade, constantemente lhe dão vinte e poucos anos.
Isso lhe agrada, gosta de afirmar em seu íntimo que tem mais maturidade do que a esperada para a sua idade, muito embora tenha apenas dezesseis e por vezes alguns surtos de insegurança.
Isolda já entendeu o teatro social de personagens e estereótipos ao qual precisa se adaptar para poder se camuflar.
Permanece com o rosto repousado nas palmas das mãos, os cotovelos apoiados próximo aos joelhos e a mínima coragem de voltar à sua vida monótona de obediências e resignações.
Respira fundo e joga os braços para trás inclinando-se em direção à cama, apoia as mãos sobre o leito e deixa cair a cabeça contra a nuca.
Permanece assim por alguns segundos desfrutando a paz que sente por conseguir se desligar um pouco, não pensar em nada, apenas isso.
Vagarosamente vai pondo-se de pé, de forma lenta e preguiçosa, quando finalmente se levanta, ergue os braços e boceja enquanto seu quadril se inclina lateralmente  ao se espreguiçar.
A gravidade soma forças com a anatomia do corpo feminino e faz com que um líquido viscoso de cheiro forte escorra de sua vagina.
Isso lhe assusta, lhe incomoda.
Volta a se sentar na cama tentando recordar mais sobre a noite anterior, lembra de poucas coisas, mas já presume ter transado outra vez sem usar preservativo.
Isso já ocorreu. Aliás, isso sempre ocorre quando se excede na bebida. Em algum momento a vontade louca de fazer sexo aflora seus instintos e faz com que abandone alguns cuidados mais básicos.
E para variar o Ryan nunca faz questão de usarem preservativos, já faz algumas semanas que ele aborda o mesmo assunto recorrente: quero ter um filho com você!
Seria lindo, seria a realização de qualquer mulher que em um relacionamento duradouro ouvisse isso de seu companheiro.
Mas não é o seu caso, não considera relacionamento o tipo de envolvimento que tem com Ryan, ele é só cinco anos mais velho que ela.
Estão transando já a alguns meses e ninguém pode saber que seu objetivo é apenas esse, então deixou que tudo ocorresse como sempre ocorre: passa a falar que não está mas a fim de sair com o menino e isso faz com ele se descubra apaixonado por ela!
O passo seguinte é o mais óbvio: ela finge titubear, encena algumas palavras de incerteza quanto ao seu próprio sentimento e como se não estivesse no controle de tudo, finge concordar que namorar é a melhor forma de vir a ter certeza do que sente.
Patético!
Mas é a melhor coisa a ser feita, não quer voltar a ter rótulos pejorativos vinculados a seu nome.
Sem contar que não esperava verdadeiramente que o Ryan fosse acreditar que havia perdido a virgindade com ele.
Ainda bem que só começou a transar com ele depois do namoro.
Esse é o tipo de pensamento que lhe faz rir sozinha, um misto de pena do incauto Ryan e deleite por sua genialidade.
Alguns suspiros entrecortados, muita bebida, a encenação de um pudor inexistente, as caras e bocas de dor que teve de fazer e a promessa que obrigou que ele fizesse antes de lhe penetrar pela primeira vez: "promete que vai ficar comigo para sempre?".
Ele disse sim.
Rapazes...
Toda sua genialidade sempre é abandonada quando se sentem excitados.
Mas as horas estão passando depressa, precisa levantar, recolher os lençóis sujos e jogar no chão do quarto, esse é o código pré-estabelecido com a empregada, ela saberá então que aqueles lençóis precisam ser lavados.
Tem de fazer a mesma vistoria de rotina antes de sair do quarto: procurar pontas de cigarro, restos de embalagem de preservativos (que ontem não usaram), e acender mais uma vela no rechaud com alguma essência só para garantir.
Pronto!
Agora precisa tomar banho e correr para casa, tem aula à tarde e não pode ter mais uma falta.
Refaz os cabelos, veste a calcinha reserva que sempre traz na bolsa e desce correndo as escadas em direção à cozinha.
A Janaína estava preparando o almoço, não pode esperar, a comida dela é boa mas não está com paciência de ouvir todo o discurso de cuidados na vida sexual que a mãe do Ryan teima em fazer sempre que se encontram.
Prefere fazer algum lanche na rua.
Põe uma maçã na bolsa para garantir e sai, ainda vai ter que justificar pra mãe os motivos de ter dormido na casa da Dalila e de seu celular estar desligado.
Mas isso é fácil, já sabe como enganar a mãe, afinal, não é mais nenhuma criança, já tem dezesseis anos.
Na calçada enquanto espera o ônibus liga o celular e a primeira coisa que aparece na tela é uma mensagem de texto do Ryan: Bom dia meu anjo. Amo você!
Patético. Isolda odeia essas sentimentalidades, é tudo muito brega.
Sem contar que lhe turvam o raciocínio.
Sua frieza e indiferença são mais importantes e eficientes na manutenção de relacionamentos.
Isolda sabe se camuflar, isso é o que importa.
Ela acompanhou todo o sofrimento de sua mãe nas noites de choro quando o pai saiu de casa.
Não sabe bem quando se tornou assim ou se já nasceu desse jeito. Mas fica feliz por seu coração ser apenas um músculo involuntário.
Sua mãe diz que amar é se sentir vivo.
Tem pena dela, ainda não entendeu que amar é estar vulnerável.
Patético!