quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Apartidário


          Solitária em sua cama, munida da pouca consciência que ainda não eliminara, mergulha profundamente dentro de si. De alguma forma não convencional, ao cair da noite se vê sempre às margens da óbvia conclusão de ser o seu próprio mundo o mais desconhecido e amorfo do qual já tomara conhecimento.  Nada que lhe apavore, nada que lhe intimide, nada que lhe aflija. Somos todos bandeirantes de nós mesmos, desbravando sentimentos e questionamentos com os quais nos deparamos de forma cíclica, ao bel-prazer da periodicidade que o querer divino julgue conveniente.

          Em sua perspectiva bastante peculiar, ousa presumir que noite e paz são antônimos diametralmente posicionados e diretamente proporcionais. Queria mesmo era fugir de tudo isso, de todo esse contexto no qual fora inserida através de uma ejaculação desprovida de método contraceptivo. Os verbos nascer e padecer não devem se correlacionar apenas pela sonoridade da última sílaba, não... Seria simplório demais para ser racional.
          O vento sutilmente lhe faz emergir de seus devaneios para lhe mostrar como pode ser prazeroso observar o valsar das cortinas. Vê nisso imediatamente duas possibilidades: a razão lhe estimula a crer que apenas fora subtraída de seus pensamentos por um simples estímulo visual que sua visão periférica captou; a religião lhe sugere a intervenção divina que de forma sutil não quis permitir que Isolda permanecesse imersa nos turvos pensamentos nos quais costuma chafurdar. E como saber o que de fato lhe fizera quebrar sua suposta linearidade de pensamentos? Talvez a melhor argumentação satisfaça, mesmo que se apresente incrustada de sofismas. É normal se questionar quanto aos motivos que lhe fazem crer ou desacreditar em algo? E se não for normal tal questionamento, quem isto afirma, seria o guardião da régua da normalidade? O fiel da balança? A anormalidade não lhe soa tão pavorosa, a normalidade não se apresenta de forma tediosa, mas e agora? Não sabe. Porém, suspira balançando a cabeça enquanto sorri com um dos cantos da boca ao perceber que acreditar é uma escolha, consciente ou não.


sexta-feira, 1 de julho de 2016

Diálogo

Inicia-se julho. Este porém é mais severo que os demais. Neste julho se encerra o prazo divino para o cometimento de besteiras/insanidades/aventuras. Não adianta tentar protelar ou negociar com o Ser Superior prolongamento de tal prazo.

- Não meu filho, já não posso conceber que te portes levianamente. Sob meu jugo permanecerás e em observância à minha lei te manterás.

Eu me calei. Não há recurso cabível quando o julgamento é divino. Resignação é a medida necessária. Mas sou humano, nunca me satisfaço:

- Mas o Senhor só me deu trinta anos de irresponsabilidade Pai... Por favor, reconsidere.

Silenciou-se o Pai. Respondeu-me o filho.

- Jesus lhe respondeu: “O que estou fazendo, você não entende agora, mas entenderá depois dessas coisas.”(João 13:7)

- Dá para ao menos não ter cabelos brancos ou dores?

Silêncio. Permaneci escutando, escutando o silêncio. Ávido pela consecução de alguma benesse. Mas só silêncio. Restou-me a dúvida: "a ligação caiu ou acabaram meus créditos?".

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quarta-feira, 1 de junho de 2016

Qualquer coisa

Eu estava quieto na cama pensando na vida. Pensando sobre a morte. Sobre o fim da vida. Sobre a vinda da morte. Sobre o início da vida e o início da morte. Enfim... Não há o que discutir: o nascimento é sim a marco inicial da morte(ou passamento, caso prefira eufemismos), a partir daí, de seu primeiro suspiro, viverás à espreita da desatenção dessa sujeita, caso não lhe dedique especial atenção, poderás protelar sua partida dessa condição humana.

Sabemos as formas de prolongar nossos anos de vida, de zelar por nossa saúde, mas ainda assim, não seguimos. Nos permitimos o primeiro gole, o primeiro trago, o primeiro beijo, a primeira fossa... E a partir daí é só descer a ladeira... Ando com medo de morrer(vou parar de beber).

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Hoje fez sol depois de dias de chuva. Seria algo irrelevante não fosse a poesia de os dias de luz virem após muitas horas de águas e nuvens.

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Acho mesmo é que estou sem assunto. Eu estou me tornando ainda mais careta, ainda mais caxias. Eu estou me sentindo velho. Já passou a me incomodar me olhar no espelho e ver essas rugas que cismaram em se alojar em minha testa. De onde vieram? Quem lhes permitiu residir em mim? Até ontem não estavam aqui.

Conversa de velho: o tempo passa muito mais rápido do que se pode imaginar. As crianças que vi hoje já estão empregadas. E pior: há ao menos mais uma geração após esta que citei.

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Engraçado depender de medicamentos. A ironia da coisa é o sua frequência cardíaca estar dependente de alguns milímetros prensados de uma substância qualquer. Ou o seu prazer, sua ereção (o prazer de sua companheira, a manutenção de seu ego). Encontrei n armazém um troço chamado espuma expansiva. Serve para vedar, preencher. Li a embalagem (gosto de fazer isso, em armazéns e supermercados) e achei de utilidade inquestionável, não para algum uso imediato, mas digamos que para ocupar vaga na caixa das coisas que se pode precisar um dia. Consultei o preço e achei caro para um objeto que não necessitava verdadeiramente, o que economizaria não comprando poderia ser convertido em alguns litros de combustível (esse tornou-se meu padrão de cálculos). Precisava mesmo de uma espuma expansiva para a alma. De uso diário, toda manhã colocar o "bico" do tubo na boca e espargiria. Pronto! Nada de vazio! Tudo preenchido!

terça-feira, 26 de abril de 2016

Divã

Talvez não haja período mais inquietante que o do ano em que se aniversaria pela trigésima vez. Relativamente estabilizado, casado (pela segunda vez, talvez pela última, quer por morte, quer por divórcio, mas queira Deus que pela última vez), religiosidade diariamente alimentada(embora não possa ser referência de conduta cristã), detentor de uma vaga de emprego(talvez nele se aposente), proprietário de um imóvel(talvez um dia o quite, talvez um dia o reforme), proprietário de um veículo (talvez um dia o quite, talvez um dia o troque) e dono de um relativo bom estado de saúde(ameaçado por alguns maus hábitos alimentares, pelas más condutas sentimentais, pela reiteradas tentativas de aumento na capacidade digestiva do precioso etílico, pelo voluntário estado de sedentarismo e principalmente pelo não exercício do perdão, próprio e alheio).

Tudo aflora e tudo emudece. Assim se vive. Toda essa duvida, toda essa incerteza, toda essa vontade não direcionada, toda essa eclosão repentina de medo, toda essa perda de iniciativa, toda a aprisionadora zona de conforto, toda essa inconstância do viver... Alguém avise ao motorista que eu quero descer desse veículo que não sei aonde vai e se vai chegar.

Há quem diagnostique "falta de Deus", há quem detecte um "quadro depressivo", há quem rotule de "desculpa pra beber", há quem diga ser "falta de sexo", há quem ordene "tu precisa meter mais", há aqueles que atentos ao "crescei e mutiplicai"  sugestionam "rapaz tu precisa ter um filho", há quem menospreze sob a alegação de que "deixa tu ter um filho, aí tu vai ver o que é responsabilidade", há quem tente ironicamente me fazer crer que tudo melhorará argumentando que "depois piora", há quem simplesmente consiga anestesiar tudo isso com algum sopro de nostalgia do tipo "tu lembra quando a gente matava aula pra ficar tomando vinho e jogando totó?", há ainda inúmeros outros a adjetivar pejorativamente de "safadeza, frescura, boiolisse, boiolagem, viadagem, tabaquice, baitolagem, papo de bichinha e conversa de mulherzinha".

O indubitável mesmo é a necessidade de todos de te colocar ainda mais para baixo, sempre sob a ótica de o teu problema ser infinitamente menor ou ridiculamente menos importante. Aliás, não tem coisa mais simples de resolver do que a vida alheia. A vida alheia sempre é de maior facilidade e convergência astral que a nossa que por vezes parece estar sendo vigiada por algum anjo/santo em fim de carreira, já sem saco para esses "mimimis" humanos.

As desilusões avolumam-se diariamente, o descontentamento com a nossa limitada capacidade de ação (na prática, apenas a cada eleição), e a sensação de impotência fazem da insensibilidade desejo diário. Ler os jornais torna-se mais moralmente ofensivo que as já tão criticadas telenovelas. Cogitei recentemente se tudo isso não seria consequência de um possível aguçamento da inata capacidade humana(afinal eu sou humano) de se indignar. Não, não deve ser. Por ora é bom até abandonar esse raciocínio. Afinal, mantê-lo resultaria na conclusão da inércia como comportamento predominante e na tentativa de ação como desvio marginal. E mais uma vez, eu,  marginal, marginalizado. Diletante e desprezado. Bolas... Por último a dúvida: será essa aflição apenas resultado da ausência da medicação que abandonei? Não sei. Sei que de cara limpa a barra é mais pesada. De cara limpa e foda bro...

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Afago

De peles, plumas ou patas?
Qual o estereótipo do seu desejo?
Já lhe disse para não ser tão exigente assim.
O mundo permanece oblíquo ao olhos que buscam fim.
Eu sereno seus desejos no intuito de lhe proteger.
Mas nada lhe satisfaz Camila.
Nada lhe sacia.
Tudo perde a graça antes mesmo de ser plenamente vivido.
O que você quer de mim Camila?
Prêmios sem mérito?
Abonos verbais aos seus silêncios?
As contas continuam a chegar e não há quem receba tristeza como forma de pagamento.
Não pense em alternativas fáceis (ou menos cansativas), o prazer que ofereces será aceito enquanto for raro ou submisso. Logo mais se desvalorizará e verás diminuir teu poder de barganha.
Qualquer comercial lhe prostra ao solo e aflora em ti o inconformismo quanto a tudo que te rodeia.
O prazer está apenas no novo?
A alegria está nas embalagens?
A aceitação correlaciona-se ao acúmulo patrimonial?
Esse status que buscas não foi arremessado dos céus ao colo daqueles que o possuem, forjou-se com suor e sacrifícios. Enquanto isso você virava a noite em devaneios e volúpias, levantando-se no dia seguinte tão somente quando a fome ou a sede intensificavam-se a ponto tirar-lhe o sono.
E não me venha com essas história de comprar miçangas e personalizar suas havaianas.
Havaiana é havaiana, é tudo igual, prenda no dedo do pé e pronto, objetivo cumprido!
Ando cansado de suas reclamações infantis, dessas chorumelas sem fim.
Tua fome de supérfluos não vai ser saciada por mim.
O que busca afinal?
Descobriu ao menos o que te alegra quando o dia chega ao fim?
Em tua cama à noite, quem zela pelo teu sono?
Achas que é o som de chuva produzido pelo aplicativo de teu celular?
Seja Camila.
Seja.
Boa noite.

domingo, 3 de abril de 2016

Pusilânime

Talvez nada seja da forma como vejo. Quem sabe minhas lentes precisem ser trocadas, quem sabe apenas possibilitem turvas imagens, imprecisas visões, melancólicas percepções visuais.

Nada parece se apresentar de modo positivo. Quem sabe só precise entregar nas mãos de Deus, quem sabe Suas mãos já estejam tão cheias das agruras humanas quem a minha apenas receba uma etiqueta de baixa prioridade e fique por aí tomando um soro "glicosado" numa maca qualquer.

Hoje cansei de olhar para frente e buscar fitar as luzes do caminho. E se forem faróis? E se eu estiver em rota de colisão?
E se eu estiver andando na contramão?
Esse peito não quer sossegar, essas dores não querem passar, essa cabeça não para de pensar.

Era preciso três de mim para suportar as dores que carrego comigo. Talvez quatro de mim pudessem responder minhas dúvidas. Dois de mim travariam as lutas que necessito pelejar. Nada feito, sou apenas um.

Apenas um homem com medo. Escondendo a vontade de chorar e a de ir embora. De abandonar tudo para ir viver um amor qualquer tendo o mar por companhia.

Hoje os dias seguem nebulosos. O toque do telefone assombra, o temor de más notícias apavora. O vazio no peito permanece. Onde está o amor que deveria sentir? Onde está o respeito que deveria existir? Onde está? Onde estou? Onde estás?

sábado, 26 de março de 2016

Reine

Ela desconhece o que é saciedade. Longe está de saber o que é razão. Veio de limitações e resignações que lhe ofendiam diretamente. Não eram para si, não deveriam ser para si, não aceitaria aquilo para si. Nunca. Merecia mais, muito mais. Sentia-se digna de tudo aquilo lhe era negado, por Deus, pela vida, pela família, pelos pais, pelo pai... Sim, o pai.

Olhava-se no espelho e não via em si nada que lhe diferença-se das outras mortais, era uma garota como qualquer outra, com dois braços, duas mãos, duas pernas, dois olhos, rosto, cabelo, brilho nos olhos, sorriso nos lábios... Então... Por que deveria ser ela a sofredora? Por que caberia a ela a sina do pato feio?

Ela não queria seguir o script, não queria ser coadjuvante do próprio destino. Simplesmente não aceitaria seguir a rotina de finalizar o ensino médio, quem sabe iniciar um curso técnico ou graduação e assim poder galgar uma melhor colocação no mercado de trabalho. Não. Ela não queria isso, ela queria ver o mundo, queria saber que cor era a chuva na Nova Zelândia, o por do sol em Dubai, o entardecer nos Estados Unidos. Qualquer coisa além de seu mundo resumido a parca alimentação, parca vestimenta, baixa qualidade de ensino, baixa qualidade de transporte (sempre público, por sinal), a espera pela refeição gratuitamente cedida (por vezes a primeira do dia), aos parcos amigos (sempre à espreita de motivos para lhe achacar, achincalhar).

Houvera um dia no qual acreditara ser o amor a porta que a retiraria desta vida por demais dolorida, nisto depositara todas as suas forças, todas as suas crenças, todas as suas esperanças, todas as possibilidades. Mas até nisto fora infeliz, como o mais bisonho dos apostadores, não se fez assenhorear das regras, dos blefes, dos encantos e desencantos do jogo no qual ingressava. Não, pobre donzela, seguiu o insano músculo cardíaco que por vezes sentia ser sua bússola, quiçá o norte não fosse seu destino, quiçá a sorte não fosse sua companhia... E apostou todas suas fichas no azarão... Sim, o mais feio, o mais introvertido, o mais antipático, o mais presunçoso, o mais magro, o mais esquálido, o mais démodé, o mais descarnado, o mais mortiço, o do dente quebrado...

Encerraram-se as apostas e agora não havia como regressar, o caminho sempre é para frente, restava-lhe agora fazer com que todos os que praguejavam contra sua aposta pudessem vir a engolir todas as suas palavras ácidas e corrosivas quando o azarão adentrasse aquele colégio de mãos dadas consigo. Assim os dias passaram, assim as semanas passaram, assim os meses passaram, assim passaram-se os anos.

Mudou-se o cenário, mudou-se o público, mudaram-se as coadjuvantes, mudou-se tudo, menos a aposta, a aposta manteve-se, e lá estava ela, Dom Quixote e Sancho Pança(não ouso correlacionar meus personagens aos já tão famosos citados personagens), o azarão e seu fã número 1, a dona do fã-clube de apenas uma pessoa. Aquela que poderia morrer por seu ídolo(ídolo?). Aquela que não merecia sofrer tudo o que já sofrera por esse sujeito desengonçado que lhe despertara o interesse ainda no início de sua lamuriosa vida. Mas sabe como é, no amor e nas apostas nem sempre se ganha.Alguém há de perder e possibilitar o lucro dos ganhadores.

A vida quis assim. A vida (fiel espectador) consegue ler em nós características que nem mesmo nós temos a consciência de possuir, desconhecemos a capacidade de superação até sermos obrigados a superar, desconhecemos nossa força até sermos obrigados a sermos fortes, pensamos saber os limites da dor que poderíamos suportar até o dia que descobrimos que nossas dores podem não ter limites e ainda assim as suportaremos. Somos a eterna expectativa do que podemos ser. Não seria diferente em suas vidas.

Fronteiras e limites não lhe apeteciam, parcelas e partes não lhe preenchiam, frações nunca lhe satisfariam. Ela quer todo, quer inteiro, quer pleno. Ousara lhe dizer que plenitude não há de ser a melhor meta a buscar. Covarde! Respondeu-me sutilmente(na medida do que se poderia classificar de sutileza naquela personalidade fronteiriça).

O destino por sua vez, piegas em demasia, sarcástico por excelência e provocador por natureza. Centelhou (pôs calor)... Tudo o que não poderia, combustível e comburente, que se inflamem mutuamente. Crepitem, ardam, estalem exaurindo-se. Quiçá finde a chama. Quiçá fogo infindo.

 

quinta-feira, 24 de março de 2016

Persona no grata

Por vezes admitir um erro torna-se responsabilidade mais leve que manter a pose, a arrogância, o orgulho.
Hoje eu quis admitir, quis abandonar o pedestal, abrir as portas e permitir o acesso ao meu eu já tão surrado pelo orgulho que trago em mim.

Hoje eu quis.
Hoje pensei poder passar pelas mágoas que me causaram, pelas mágoas que eu me causei pensando no que poderiam ter feito, dito, consumado.
Hoje elas ainda ardem.

O pior desconhecido é sem dúvida aquele a quem um dia chamamos de amigo.
Hoje todos eles se tornaram desconhecidos.
Hoje todos eles vestiram novos rostos, sorrisos, humores e personalidades.
Já não conheço ninguém.

Ainda busco saber quem pode ter dado o primeiro passo em falso que nos melindrou a ponto de não mais nos reconhecermos.
Reconheço ser trabalho inútil, ou talvez seja de pérfidos resultados, pois acarretaria na minha egoísta paz de espírito por não ter iniciado tudo isto, ou na depressão etílica por ser eu o culpado.

Estou triste.
O coração permanece aflito, o silêncio é corrosivo e eu já nem sei mais no que pensar.
Relembrei aleatoriamente um comentário que me fizeram sobre não perceber as reais intensões de quem me rodeia, lembrei das palavras "sempre quis o que é seu".

Mas não é/era/foi ou será meu.
Ainda assim...
Doeu.
Vou sobreviver.
Vou esquecer.
Vou reorganizar as prioridades, ativar os bloqueios, reduzir os encontros, eliminar as conversas, condená-los ao degredo, ao ostracismo de mim.
Vou viver sozinho...

quarta-feira, 23 de março de 2016

Subúrbio / Cidade

Ela desejava ser despida, não por necessitar ou por volúpia, mas por sentir-se digna disso, não da mesma forma que todas as outras mulheres já desnudadas por ele, mas erigindo-se peculiarmente de um passado nostálgico que nas brincadeiras da vida desaguou no presente.

Esperava poder acompanhar o passeio dos olhos dele por suas curvas sugestivas, quem sabe decifrar o esboço facial repentino que ele certamente faria, ver sua surpresa ser substituída pela torrente caudalosa do desejo denunciada pela ereção que a esta altura não mais poderia ser disfarçada em sua bermuda.

Descobrir todo primitivismo sensorial que as mãos simiescas dele poderiam delatar por sua dificuldade em abrir o sutiã. Esperar o desabar de tal peça que impelida pela gravidade lançaria-se ao solo, sentir a temperatura das palmas de suas mãos que se fartariam em seus seios, precedendo os lábios grossos e sedentos que lhe sugariam e antecipariam a língua em movimentos circulares sobre as aréolas de seus mamilos.

Puxaria a boca dele ao encontro da sua com um gesto brusco valendo-se para isso dos cabelos desgrenhados que lhe ornamentam a cabeça. Saberia exatamente a velocidade, intensidade e compressão com que se deleitaria nos lábios dele, deixaria que demonstrasse todo seu potencial, receberia com humildade os exibicionismos labiais daquele lacaio de seu prazer, quando o ciclo se fechasse e reiniciassem os movimentos de sua boca é que então protagonizaria o que de melhor ele poderia vir a sentir na vida. Já idealizava desprenderem-se momentaneamente as bocas(deixaria claro que o show dele acabara), pressionariam-se as testas propiciando a abertura momentânea dos olhos, sorriria matreira e com um leve floreio no ar iniciaria o espetáculo.

Tinha em sua mente a idealização dos primeiros momentos daquele que seria o mais belo registro de sua memória. Alimentava por meses o platônico desejo contemplando-o da arquibancada de seus sonhos. Sorria-se intimamente ao menor sinal de percepção de sua existência por ele. Quando desvanecia, quando se julgava inexistente na vida do ser ao qual fora prometida, retroalimentava-se argumentando consigo que falta não faz o que nunca se teve.

Falácia! Era a prova viva da insustentabilidade de tal argumento. Bobagem, não há de exigir racionalidade ao ser que ama. Queria acordar-se um dia imbuída de coragem, banhar-se com cuidado e zelo para preparar com aromas o próprio corpo, adrede trabalhado para servi-lo, onde imaginava poder vê-lo saciado. Maquiar-se com uma diva, vestir-se gloriosamente e sair às ruas atraindo para si todos os olhares. Quando por fim o encontrasse, saberia despertar-lhe a iniciativa, colocar-se-ia em situação de vulnerabilidade, como uma presa que deseja ser atacada, mas não por qualquer predador, não por qualquer fera, trazia na pele o molde das presas que desejava. Aqui o degas não aceitaria um impostor.

Tudo isso lhe aflorava a mente no penoso percurso ao trabalho. Alheava-se ao vê-lo, sempre tão enigmático, silencioso, reservado. Como um castelo resguardado pelas muralhas de seu silêncio. Observava-o incansavelmente, à espreita de uma fenda, uma brecha, uma falha na couraça de autismo encimada pelos fones de ouvido que ele usava não lhe permitindo sequer adentrar o universo musical que lhe apetecia. Findo o trajeto, aproximava-se da porta traseira para o desembarque, não sem antes arrematar sua viagem com a última investida de olhares ao feérico ser que ainda não acordara de seu encantamento, então suspirava: um dia ele vai me ver...