Ela desconhece o que é saciedade. Longe está de saber o que é razão. Veio de limitações e resignações que lhe ofendiam diretamente. Não eram para si, não deveriam ser para si, não aceitaria aquilo para si. Nunca. Merecia mais, muito mais. Sentia-se digna de tudo aquilo lhe era negado, por Deus, pela vida, pela família, pelos pais, pelo pai... Sim, o pai.
Olhava-se no espelho e não via em si nada que lhe diferença-se das outras mortais, era uma garota como qualquer outra, com dois braços, duas mãos, duas pernas, dois olhos, rosto, cabelo, brilho nos olhos, sorriso nos lábios... Então... Por que deveria ser ela a sofredora? Por que caberia a ela a sina do pato feio?
Ela não queria seguir o script, não queria ser coadjuvante do próprio destino. Simplesmente não aceitaria seguir a rotina de finalizar o ensino médio, quem sabe iniciar um curso técnico ou graduação e assim poder galgar uma melhor colocação no mercado de trabalho. Não. Ela não queria isso, ela queria ver o mundo, queria saber que cor era a chuva na Nova Zelândia, o por do sol em Dubai, o entardecer nos Estados Unidos. Qualquer coisa além de seu mundo resumido a parca alimentação, parca vestimenta, baixa qualidade de ensino, baixa qualidade de transporte (sempre público, por sinal), a espera pela refeição gratuitamente cedida (por vezes a primeira do dia), aos parcos amigos (sempre à espreita de motivos para lhe achacar, achincalhar).
Houvera um dia no qual acreditara ser o amor a porta que a retiraria desta vida por demais dolorida, nisto depositara todas as suas forças, todas as suas crenças, todas as suas esperanças, todas as possibilidades. Mas até nisto fora infeliz, como o mais bisonho dos apostadores, não se fez assenhorear das regras, dos blefes, dos encantos e desencantos do jogo no qual ingressava. Não, pobre donzela, seguiu o insano músculo cardíaco que por vezes sentia ser sua bússola, quiçá o norte não fosse seu destino, quiçá a sorte não fosse sua companhia... E apostou todas suas fichas no azarão... Sim, o mais feio, o mais introvertido, o mais antipático, o mais presunçoso, o mais magro, o mais esquálido, o mais démodé, o mais descarnado, o mais mortiço, o do dente quebrado...
Encerraram-se as apostas e agora não havia como regressar, o caminho sempre é para frente, restava-lhe agora fazer com que todos os que praguejavam contra sua aposta pudessem vir a engolir todas as suas palavras ácidas e corrosivas quando o azarão adentrasse aquele colégio de mãos dadas consigo. Assim os dias passaram, assim as semanas passaram, assim os meses passaram, assim passaram-se os anos.
Mudou-se o cenário, mudou-se o público, mudaram-se as coadjuvantes, mudou-se tudo, menos a aposta, a aposta manteve-se, e lá estava ela, Dom Quixote e Sancho Pança(não ouso correlacionar meus personagens aos já tão famosos citados personagens), o azarão e seu fã número 1, a dona do fã-clube de apenas uma pessoa. Aquela que poderia morrer por seu ídolo(ídolo?). Aquela que não merecia sofrer tudo o que já sofrera por esse sujeito desengonçado que lhe despertara o interesse ainda no início de sua lamuriosa vida. Mas sabe como é, no amor e nas apostas nem sempre se ganha.Alguém há de perder e possibilitar o lucro dos ganhadores.
A vida quis assim. A vida (fiel espectador) consegue ler em nós características que nem mesmo nós temos a consciência de possuir, desconhecemos a capacidade de superação até sermos obrigados a superar, desconhecemos nossa força até sermos obrigados a sermos fortes, pensamos saber os limites da dor que poderíamos suportar até o dia que descobrimos que nossas dores podem não ter limites e ainda assim as suportaremos. Somos a eterna expectativa do que podemos ser. Não seria diferente em suas vidas.
Fronteiras e limites não lhe apeteciam, parcelas e partes não lhe preenchiam, frações nunca lhe satisfariam. Ela quer todo, quer inteiro, quer pleno. Ousara lhe dizer que plenitude não há de ser a melhor meta a buscar. Covarde! Respondeu-me sutilmente(na medida do que se poderia classificar de sutileza naquela personalidade fronteiriça).
O destino por sua vez, piegas em demasia, sarcástico por excelência e provocador por natureza. Centelhou (pôs calor)... Tudo o que não poderia, combustível e comburente, que se inflamem mutuamente. Crepitem, ardam, estalem exaurindo-se. Quiçá finde a chama. Quiçá fogo infindo.