segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Abertura de vagas.

 

              O som do despertador do celular lhe interrompe o sono. Não por muito tempo. Em um movimento costumeiro e preciso ela segura o pequeno aparelho perturbador vibratório e ainda sem abrir os olhos pressiona o botão certo para fazê-lo silenciar. Vira-se de bruços tentando prolongar sua sonolência, mas os sons de sua família acordada do lado de fora do quarto lhe lembram de que precisa levantar. Ergue-se e tira a camisola do Snoopy que usa para dormir. Caminha nua até o banheiro onde entra executando um sequência de atos quase involuntários. Aciona o interruptor à sua direita, levanta a tampa do vaso sanitário, gira o corpo e senta-se preguiçosamente.

Poderia afirmar que urinou infinitamente, por horas, mas sabe estar aumentando as coisas. Enxuga-se com o papel higiênico de folha dupla (um dos luxos que sua mãe se permite) e sai em direção ao seu ninho.

O relógio de cabeceira indica a hora: 06:36. Pega o celular e verifica as novidades em seu grupos de whatsapp, no twitter, instagram e facebook. As mesmas baboseiras de sempre, mas há uma mensagem do Ryan que destoa do banal: "estarei em casa sozinho durante toda a manhã, o que acha de assistirmos algum filme?".

Tédio. Em apenas alguns meses de namoro o relacionamento deles caminha a passos voluntários (dele) pela estrada da monotonia. Estar com ele sozinha e apenas assistir um filme?
Passa a se questionar se teria se tornado tão desinteressante assim. Será eu que não o excito? Ele não tem mais tesão em mim?

Ele não consegue entender que uma mulher também sente tesão? O filho da puta do Ryan não poderia ao menos enviar uma mensagem menos pudica? Quem sabe narrando tudo o que pretende fazer com ela durante o tempo em que estiverem juntos (isso se ela aceitar o convite de ir a seu encontro). Sabe que não pode deixar de ir, sabe que precisa ser a namorada romântica que fica feliz apenas de poder estar ao lado do amor de sua vida.

Além do mais, é melhor que vá passar a manhã com ele, afinal, já está sem nenhum baseado e precisa repor seu estoque. Ele nunca ousou sequer comentar quanto lhe custava toda a maconha que lhe fornecia, talvez já tenha entendido que o privilégio de poder gozar enquanto ela o cavalga e esfrega os seios em seu rosto também tem um preço.

Decide tomar banho e acelerar os preparativos para encontrar com ele. Precisa se depilar, pretende banir todos os pelos que ornamentam sua vagina como forma de convite silencioso para a língua dele. Sabe que não funcionará, precisará dar muito mais que este sinal  para ter o que deseja.

Por vezes chega a se entediar enquanto transam, ele é muito metódico e não aprendeu ainda que no sexo não existe sequência perfeita de  passos. Sempre do mesmo jeito: beijos, apaixonados, um despindo o outro(ela sempre atenta ao ritmo de tudo o que ele faz, o maestro é ele), é deitada como em contos de fada já quase nua, logo em seguida sua última peça(sempre a calcinha, preferencialmente de renda e com algum laço na frente) é removida. Logo em seguida ele lhe penetra de forma carinhosa, mantém sempre a mesma velocidade até que se canse e peça para ela vir para cima.

Sobe em cima dele sabendo que não pode se deixar possuir por seus instintos, sempre finge um pequeno pudor e deixa que ele direcione seu pau até sua entrada, após isso, passa a mover-se no ritmo que as mãos dele em seu quadril determinam, nunca ousa acelerar, já percebeu que ele não gosta de se sentir dominado, assim continua até perceber que ele está quase gozando, sabe então que é hora de se concentrar ou terá de terminar tudo sozinha no breve espaço de tempo em que ele vai ao banheiro logo após gozar. Com a mudança da expressão facial dele indicando o gozo iminente ela passa então a pressionar com força seu clitóris contra o púbis dele até gozar.

Essa sequencia torna-se tediosa devido à reiteração dos atos. Por vezes sente vontade de sentar em cima dele e cavalgar desesperadamente, estapear o rosto dele enquanto o cavalga, sentir as mãos dele apertando seus seios até chegarem ao pescoço e simularem um estrangulamento. Mas não... Ela era virgem até ele lembra? Não pode demonstrar nada que ele não sabe. Mas porra!!!!! Custava ele qualquer dia desses enfiar o pau em sua boca? Jura que sentiu vontade de pedir a ele que a deixasse lhe chupar, mas lembra-se sempre que ele diz que certas coisas não devem acontecer entre duas pessoas que se amam. Isso já lhe fez desejar o ódio dele, ou quem sabe que a enxergasse como uma vadia qualquer.

Suas libidinosas reflexões abrandam conforme a concentração de xampu diminui em sua cabeça até cessarem completamente com o fim do banho. Enxuga-se esquadrinhando pelo espelho grande as curvas de seu corpo. Ele não vê o seu potencial? Porra, ele nunca lhe deu nem um tapa no bumbum enquanto transam... Veste-se, joga o lubrificante íntimo que guarda escondido entre os sapatos na bolsa juntamente com uma calcinha reserva, toma o anticoncecional com o resto de água da garrafa que deixa ao lado da cama e se olha novamente no espelho. Pensa quanto tempo levaria para que conseguisse estimular nele a vontade de se tornar mais “homem”. Não tem paciência para isso, muito menos inspiração, desde o colégio sempre odiou ditados, e se imaginar ditando(faz assim, desse jeito) já lhe dá repugnância a ponto de fazer caretas.

Apanha a bolsa e joga nas costas, sai do quarto, fecha a porta e para no topo das escadas. Tomou uma decisão quanto ao Ryan, não pode cobrar dele todas essas coisas, pensando bem, começa a acreditar que os cinco anos a mais que ele possui devem ter sido utilizados jogando videogame ou conversando sobre motos. Normal para os garotos. Nem cogita findar o namoro ou qualquer coisa do tipo. Precisa continuar sendo “moça comportada”. Mas sem nenhum recato ou mal-estar decide: vai arranjar alguém que lhe foda do jeito que quer, e que não lhe tenha sentimento algum. Quer apenas sexo, luxúria, prazer. No máximo algumas dores musculares no dia seguinte para lhe lembrar de que a noite foi maravilhosa. Ryan vai continuar sendo seu bibelô, esse lugar ninguém lhe tomará, sabe muito bem manter-se imune a sentimentos e não cogita a hipótese de se ver em dúvida amorosa, não, isso não lhe ocorrerá. Como garantia, quem quer que seja seu próximo “brinquedo sexual”, não poderá ser solteiro. Sabe como é, o ócio nos leva a devaneios e coração é terra fértil pra loucuras.

Monotonia

A aula de física mecânica e sua ausência de aplicação prática faziam com que os ponteiros do grande relógio sobre o quadro branco se arrastassem.

Já havia exaurido todos os assuntos que necessitava conversar com sua colega de classe Dalila. Teoricamente a amizade de ambas seria o que se costuma nomear de "unha e carne". Gostava disso, ter um algum tipo de amizade lhe dava a imagem de normalidade, além de lhe permitir ter as facilidades que uma cúmplice oferece, muito embora nunca lhe tenha sido fácil dar a contrapartida necessária para a manutenção do relacionamento: ouvir pacientemente os dilemas existenciais infantis da Dalila sobre a perda da virgindade e todas suas implicações.

Trocaram bilhetes repletos de seus hieróglifos versando sobre a percepção feminina do universo juvenil masculino, poderia jurar terem escrito linhas em quantidade suficiente para compor o primeiro volume de qualquer tratado sobre o assunto, mas ainda assim, os quarenta e cinco minutos da primeira aula de física sequer haviam findado.

Olhava para o quadro branco tentando reproduzir por meios próprios o mesmo bem-estar que sentia quando fumava algum baseado, chegou a pensar que se tivesse tragado algum estaria diante de uma boa oportunidade de curtir sua lombra introspectiva.

Achava engraçados os pequenos retângulos desenhados no quadro e nomeados com as primeiras letras do alfabeto. Possuíam flechas vetoriais saindo de si a indicar os sentidos de seus fictícios deslocamentos, foram feitas sem grande minúcia, afinal, serviriam apenas para tornar mais acessível aos alunos a absorção do conteúdo. Ainda assim, sem grandes dificuldades, possibilitavam a Isolda tornar-se alheia a tudo que ocorria ao seu redor apenas ao observá-los.

Os quadriláteros alternavam-se em cores entre azul, preto e vermelho, representavam corpos deslocando-se no mesmo sentido ou não, findando quase sempre em colisões que eram carinhosamente eufemizadas pelo professor que as chamava de “ponto de encontro”. Já entendera a necessidade de dominar o conteúdo que lhe era apresentado para utilizá-lo em exames futuros, mas afora isso, não via grande valia em tudo aquilo.

Naquele instante seus olhos fixos no quadro eram interpretados como demonstração de sua atenção ao assunto ministrado. Por vezes o professor dirigia-se a ela balançando a cabeça enquanto falava como se perguntasse com sua linguagem corporal se estava conseguindo acompanhá-lo em sua linha de raciocínio.

Como se hipnotizada, permanecia inerte observando-o, mas já não ouvia sua voz. Em um cinema mudo via seus labios se abrirem e fecharem mastigando o ar enquanto seus braços se movimentavam incessantemente apontando os quadriláteros e suas direções. A imagem lhe lembrava os bonecos infláveis de postos de gasolina, cujos braços se movimentam subindo e descendo impelidos pela força do vento que o ventilador no chão lhes dá.

A sala de repente desmaterializou-se enquanto imaginava se teria o professor pelos em seu peitoral. Ele não era dono do mais perfeito porte físico, no entanto, a precisa delineação dos trapézios e ombros sob a camisa de malha de algodão denunciava uma frequência irregular em academias.

Seu momento de luxúria clichê é interrompido pela dúvida sobre se havia tomado seu anticoncepcional na manhã anterior. Começou tomando à noite, sempre antes de dormir, mas suas necessidades etílicas por vezes a haviam feito descontinuar o uso da medicação. Mudou o horário para manhã, mesmo que bebesse e perdesse a hora, se habituaria a tomá-lo como primeira atividade do dia. Para isso rasgou cuidadosamente uma das costuras internas de sua bolsa com ajuda de um estilete e lá depositou a cartela das pílulas.

Uma leve dor de cabeça passa a lhe incomodar. Deveria ter tomado algo para prevenir a companhia da ressaca, ainda assim sente-se feliz por ter lembrado de comprar água, sempre fica com a garganta seca quando fuma algum baseado. Baixa a cabeça voltando os olhos para o caderno e aproveitando para esquadrinhar o corpo do professor de costas enquanto ele psicografa mais e mais quadriláteros no quadro. Percebe que ele tem uma bunda considerável e isso a excita.

Com o mesmo fervor e seriedade de quem reza, pronuncia o próprio nome em voz baixa enquanto o escreve na folha em branco do caderno. Observa-o. Ama seu próprio nome, ama a força que ele transmite apenas ao ser pronunciado. O ócio mental lhe leva a imaginar anagramas com próprio nome, I-S-O-L-D-A. Fecha os olhos e no escuro de suas pálpebras passa a ver as letras de seu nome reluzindo em cor branca e valsando de forma desordenada enquanto se agrupam formando variações. Segura a caneta com a firmeza de quem pesca com varas, não pode se distrair, não pode deixar passar algum anagrama interessante, precisa registrá-los.

Surgem as primeiras combinações dignas de transpor o mundo das ideais e se materializarem no papel: LÁ-DÓ-SI; DIA-SOL; SÓLIDA. Abre os olhos e esboça com o canto dos lábios um sorriso irônico ao constatar as variações que lhe ocorreram. Acha engraçado pensar que contém em seu nome as letras que nomeiam três notas musicas, seria poético, não fosse o fato de que apenas três notas sirvam na melhor das hipóteses para compor um mantra. Talvez as três notas possam formar uma tríade e assim resultariam inevitavelmente em um acorde. As notas de seu nome formando um acorde afloram nova dúvida: seria eu um acorde maior? Menor?

Balança a cabeça como forma de limpar o pensamento e se volta ao próximo anagrama: DIA-SOL. Vago, muito embora seja mais alegre, DIA-SOL, ou dia de sol... Contrai os lábios em sinal de descontentamento, muito alto-astral, isso não combina consigo. SÓLIDA. Gostou desse, finalmente algo que a define, que a espelha. Sente-se sempre segura de si, de suas escolhas, de seus prazeres. Solidez, segurança, convicção. Gosta de se adjetivar assim, talvez presunçosamente, ou por ter um amor próprio exacerbado. Tanto faz. É melhor que ela própria se ame, isso sempre se repercutirá de forma positiva. Muito pior seria se projetasse em terceiros o dever de lhe amar como pré-requisito para sua própria aceitação. Patético. Não pode esperar colher amor onde apenas semeia sexo.

A sirene escolar lhe traz à realidade. Fecha o caderno e começa a reunir suas coisas. SÓLIDA. Precisa ser sólida, tanto quanto suas mentiras. Ainda terá de jantar e reiterar suas falácias diante dos olhos de sua mãe hoje antes de finalmente poder deitar na própria cama e dormir. Fácil. Mentir não lhe dá trabalho.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Insônia


Alguns amores e algumas dores nós sempre traremos no peito.
 

 Personagens fortes sempre me atrairam.
Talvez resquícios de uma infância permeada por pessoas fortes.
E aprendi convivendo com elas que perfeição não é o adjetivo que melhor descreve as pessoas de personalidade forte.
Elas são difíceis, pedras brutas, por vezes indigestas, de convívio arduo, fronteiriças... Ácidas até em sorrisos,  mas apaixonantes, acima de tudo apaixonantes.
Vivo buscando tais pessoas, vivo sedento do convívio com elas, como um vício íntimo.


As pusilânimes nunca me apeteceram.
As amáveis, doces, afáveis e de fácil convívio são previsíveis, repetitivas, monótonas, quiçá enjoativas.
Afirmo tais coisas com a certeza de quem fecha os olhos para fazer uma escolha.


Nada sei.
Nada penso.
Nada quero.
Ou talvez queira: ter apenas minha companhia.
Relacionamentos costumam ser caros em demasia. Não apenas na acepção pecuniária da palavra, mas em todas.
Por vezes tento me impor o raciocínio de que os custos são cobertos pelos benefícios, então percebo que dentro de um relacionamento até mesmo os benefícios tem um preço, o que resulta em custos sobre custos.


Cansado.
A sombra da infelicidade enegrece meus dias.
Limitações/convenções sociais fustigam-me em silêncio com a paciência das formigas que lentamente minam toda uma casa.
Cesso meus pensamentos e espero que tudo passe(mas não passa).
Refreio meus desejos sob o argumento de que a dor alheia não pode ser o preço da minha felicidade. Mas então é a minha infelicidade algo a se prescindir?


Busco apoio profissional e tudo que recebo é uma prescrição médica em folhas azuis para a aquisição de remédios controlados, mais de um, mais de uma vez ao dia.
Pela manhã, um inibidor seletivo da recaptação de serotonina (antidepressivo), à noite, um indutor do sono.
Assim os dias passam mais rápido, as vontades deixam de existir, as dúvidas arrefecem, o barulho dentro da cabeça silencia e a libido falece.


Preciso mesmo é dos riscos.
O risco de ser comprovadamente a ovelha negra de uma família já não assombra, basta não abrir meu convívio a ninguém, não compartilhar nada sobre mim, ter respostas evasivas, buscar paciência para suportar que as pessoas que apresentam aquele sorriso de "eu sou melhor que você" possam gargalhar em minha presença.
Ao final das risadas tentarei esboçar um sorriso de lábios enquanto me despeço em direção ao próximo bar.


A percepção de filhos como cadeados que nos prendem ao que não sabemos se queremos assombra em 3D.
Alguém me perguntou se quero ter de acordar de madrugada para trocar fraldas? Preparar comida? Socorrer meu pequeno ao hospital mais próximo?
Egocêntrico?
Eu?
Infantil?
E quem vai cuidar de você quando envelhecer?
Ok.
Então é para isso que servem os filhos?
Retiro lentamente o vel que pus em meus olhos e descubro que minha esterilidade sentimental se deixa vender por qualquer trocado de conveniência e comodidade.
Ok.
Mas ainda posso renunciar tudo isso?