segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Monotonia

A aula de física mecânica e sua ausência de aplicação prática faziam com que os ponteiros do grande relógio sobre o quadro branco se arrastassem.

Já havia exaurido todos os assuntos que necessitava conversar com sua colega de classe Dalila. Teoricamente a amizade de ambas seria o que se costuma nomear de "unha e carne". Gostava disso, ter um algum tipo de amizade lhe dava a imagem de normalidade, além de lhe permitir ter as facilidades que uma cúmplice oferece, muito embora nunca lhe tenha sido fácil dar a contrapartida necessária para a manutenção do relacionamento: ouvir pacientemente os dilemas existenciais infantis da Dalila sobre a perda da virgindade e todas suas implicações.

Trocaram bilhetes repletos de seus hieróglifos versando sobre a percepção feminina do universo juvenil masculino, poderia jurar terem escrito linhas em quantidade suficiente para compor o primeiro volume de qualquer tratado sobre o assunto, mas ainda assim, os quarenta e cinco minutos da primeira aula de física sequer haviam findado.

Olhava para o quadro branco tentando reproduzir por meios próprios o mesmo bem-estar que sentia quando fumava algum baseado, chegou a pensar que se tivesse tragado algum estaria diante de uma boa oportunidade de curtir sua lombra introspectiva.

Achava engraçados os pequenos retângulos desenhados no quadro e nomeados com as primeiras letras do alfabeto. Possuíam flechas vetoriais saindo de si a indicar os sentidos de seus fictícios deslocamentos, foram feitas sem grande minúcia, afinal, serviriam apenas para tornar mais acessível aos alunos a absorção do conteúdo. Ainda assim, sem grandes dificuldades, possibilitavam a Isolda tornar-se alheia a tudo que ocorria ao seu redor apenas ao observá-los.

Os quadriláteros alternavam-se em cores entre azul, preto e vermelho, representavam corpos deslocando-se no mesmo sentido ou não, findando quase sempre em colisões que eram carinhosamente eufemizadas pelo professor que as chamava de “ponto de encontro”. Já entendera a necessidade de dominar o conteúdo que lhe era apresentado para utilizá-lo em exames futuros, mas afora isso, não via grande valia em tudo aquilo.

Naquele instante seus olhos fixos no quadro eram interpretados como demonstração de sua atenção ao assunto ministrado. Por vezes o professor dirigia-se a ela balançando a cabeça enquanto falava como se perguntasse com sua linguagem corporal se estava conseguindo acompanhá-lo em sua linha de raciocínio.

Como se hipnotizada, permanecia inerte observando-o, mas já não ouvia sua voz. Em um cinema mudo via seus labios se abrirem e fecharem mastigando o ar enquanto seus braços se movimentavam incessantemente apontando os quadriláteros e suas direções. A imagem lhe lembrava os bonecos infláveis de postos de gasolina, cujos braços se movimentam subindo e descendo impelidos pela força do vento que o ventilador no chão lhes dá.

A sala de repente desmaterializou-se enquanto imaginava se teria o professor pelos em seu peitoral. Ele não era dono do mais perfeito porte físico, no entanto, a precisa delineação dos trapézios e ombros sob a camisa de malha de algodão denunciava uma frequência irregular em academias.

Seu momento de luxúria clichê é interrompido pela dúvida sobre se havia tomado seu anticoncepcional na manhã anterior. Começou tomando à noite, sempre antes de dormir, mas suas necessidades etílicas por vezes a haviam feito descontinuar o uso da medicação. Mudou o horário para manhã, mesmo que bebesse e perdesse a hora, se habituaria a tomá-lo como primeira atividade do dia. Para isso rasgou cuidadosamente uma das costuras internas de sua bolsa com ajuda de um estilete e lá depositou a cartela das pílulas.

Uma leve dor de cabeça passa a lhe incomodar. Deveria ter tomado algo para prevenir a companhia da ressaca, ainda assim sente-se feliz por ter lembrado de comprar água, sempre fica com a garganta seca quando fuma algum baseado. Baixa a cabeça voltando os olhos para o caderno e aproveitando para esquadrinhar o corpo do professor de costas enquanto ele psicografa mais e mais quadriláteros no quadro. Percebe que ele tem uma bunda considerável e isso a excita.

Com o mesmo fervor e seriedade de quem reza, pronuncia o próprio nome em voz baixa enquanto o escreve na folha em branco do caderno. Observa-o. Ama seu próprio nome, ama a força que ele transmite apenas ao ser pronunciado. O ócio mental lhe leva a imaginar anagramas com próprio nome, I-S-O-L-D-A. Fecha os olhos e no escuro de suas pálpebras passa a ver as letras de seu nome reluzindo em cor branca e valsando de forma desordenada enquanto se agrupam formando variações. Segura a caneta com a firmeza de quem pesca com varas, não pode se distrair, não pode deixar passar algum anagrama interessante, precisa registrá-los.

Surgem as primeiras combinações dignas de transpor o mundo das ideais e se materializarem no papel: LÁ-DÓ-SI; DIA-SOL; SÓLIDA. Abre os olhos e esboça com o canto dos lábios um sorriso irônico ao constatar as variações que lhe ocorreram. Acha engraçado pensar que contém em seu nome as letras que nomeiam três notas musicas, seria poético, não fosse o fato de que apenas três notas sirvam na melhor das hipóteses para compor um mantra. Talvez as três notas possam formar uma tríade e assim resultariam inevitavelmente em um acorde. As notas de seu nome formando um acorde afloram nova dúvida: seria eu um acorde maior? Menor?

Balança a cabeça como forma de limpar o pensamento e se volta ao próximo anagrama: DIA-SOL. Vago, muito embora seja mais alegre, DIA-SOL, ou dia de sol... Contrai os lábios em sinal de descontentamento, muito alto-astral, isso não combina consigo. SÓLIDA. Gostou desse, finalmente algo que a define, que a espelha. Sente-se sempre segura de si, de suas escolhas, de seus prazeres. Solidez, segurança, convicção. Gosta de se adjetivar assim, talvez presunçosamente, ou por ter um amor próprio exacerbado. Tanto faz. É melhor que ela própria se ame, isso sempre se repercutirá de forma positiva. Muito pior seria se projetasse em terceiros o dever de lhe amar como pré-requisito para sua própria aceitação. Patético. Não pode esperar colher amor onde apenas semeia sexo.

A sirene escolar lhe traz à realidade. Fecha o caderno e começa a reunir suas coisas. SÓLIDA. Precisa ser sólida, tanto quanto suas mentiras. Ainda terá de jantar e reiterar suas falácias diante dos olhos de sua mãe hoje antes de finalmente poder deitar na própria cama e dormir. Fácil. Mentir não lhe dá trabalho.

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